A Matrioska


Do cimo duma prateleira na estante principal da sala, ela via as pessoas que habitavam a casa. Na verdade, não sabia o que eram pessoas, apenas observava aqueles seres estranhos e os seus comportamentos. Ela era estática, uniforme, mantinha-se sossegada na sua estrutura rígida de madeira oca. Os seres da casa eram de diferentes tamanhos, tanto riam como choravam, abraçavam-se ou gritavam uns com os outros. Tudo lhe parecia muito confuso.
Um dia, um dos seres mais pequenos pegou-lhe e tanto a abanou que, sem que ela percebesse como, parte do seu corpo separou-se e lá de dentro saiu uma outra que lhe pareceu igual a si. Depois reparou no tamanho e em alguns elementos da pintura exterior. Não, não era igual. Era uma outra ela, uma qualquer estranha camada que tinha saído do seu corpo. Aquela inesperada separação fez com que ficasse aterrorizada. Que aconteceria agora? Iria perder certamente uma parte importante da sua identidade. Antes que pudesse ter resposta às suas dúvidas, o pequeno ser, curioso como pareciam ser todos eles, fez com que outra semelhante a elas saísse da anterior. E depois outra… E outra… Por fim tudo parou. Eram sete. A última era tão pequenina que mal a conseguia ver. Olhando para elas, julgou que tinha ficado vazia, já que cada uma seria uma camada daquilo que pensava, via ou sentia. Não que ela soubesse o que eram sentimentos. Só sabia que, ao perder aquelas camadas, não era a mesma. Ignorava que as tinha, não sabia a falta que todas lhe faziam.
Um dos seres maiores da casa, ao ver todas espalhadas, zangou-se com o ser mais pequeno e colocou, uma por uma, as camadas dentro dela. Sentiu-se outra vez completa mas curiosamente diferente, como se o conhecimento da sua composição estrutural e da existência daquelas outras “ela” a tivesse mudado de uma forma definitiva.
Do cimo da sua prateleira, continuou a observar o comportamento dos seres estranhos que a rodeavam. Agora acariciavam aquele com quem se tinham zangado. Desta vez, aquilo não lhe fez confusão. Uniforme e estática, mas sabendo que não o era realmente, dedicou-se a perceber as camadas de cada um daqueles seres. Todos eles as tinham, sete ou mais. A sua existência naquela casa passou a ser uma viagem de descoberta e, pela primeira vez, desejou que o pequeno a desmanchasse mais uma vez, para ter tempo de conhecer todas as versões dela que cabiam dentro daquele exterior uniforme.

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