Mensagens

As gavetas

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O homem chegava todos os dias à mesma hora ao café. Sentava-se normalmente na mesma mesa e perguntava à empregada o que havia para almoçar. Por vezes trazia o neto que tinha ido buscar à escola. Depois de comer, passava para uma mesa mais pequena para tomar o café e ler o jornal. Chegavam outros clientes e ele avisava: olhe, o que está bom é isto ou aquilo, aconselho. Os outros agradeciam o conselho que não tinham pedido. Uma questão de educação. Iam entretanto chegando alguns amigos dali do bairro. Para beber café, para conversar. Olhe, viu aquilo do Sporting, ontem? Como o homem era do Benfica, armava-se logo ali uma discussão que a empregada fazia parar, com piadas para os dois. Olhe e afinal em quem é que você votou, perguntava outro. Eu não votei em ninguém, isto é tudo uma data de corruptos. Ele também não tinha votado mas foi buscar os seus vagos conhecimentos políticos para dizer que não era bem assim, havia gente honesta. Qual, qual? Diga lá para eu perceber em quem votou....

A Matrioska

Do cimo duma prateleira na estante principal da sala, ela via as pessoas que habitavam a casa. Na verdade, não sabia o que eram pessoas, apenas observava aqueles seres estranhos e os seus comportamentos. Ela era estática, uniforme, mantinha-se sossegada na sua estrutura rígida de madeira oca. Os seres da casa eram de diferentes tamanhos, tanto riam como choravam, abraçavam-se ou gritavam uns com os outros. Tudo lhe parecia muito confuso. Um dia, um dos seres mais pequenos pegou-lhe e tanto a abanou que, sem que ela percebesse como, parte do seu corpo separou-se e lá de dentro saiu uma outra que lhe pareceu igual a si. Depois reparou no tamanho e em alguns elementos da pintura exterior. Não, não era igual. Era uma outra ela, uma qualquer estranha camada que tinha saído do seu corpo. Aquela inesperada separação fez com que ficasse aterrorizada. Que aconteceria agora? Iria perder certamente uma parte importante da sua identidade. Antes que pudesse ter resposta às suas dúvidas, o peque...

A mais bela varanda para o sonho

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A ilha acorda-nos estendendo o braço de luz velada pela janela do quarto. Há sempre o canto dum pássaro louvando o sol ou um simples piar melancólico por entre a neblina. Os deuses da ilha são caprichosos. Choram e riem com a mesma facilidade, tornando os dias imprevisíveis. Irão desvendar os tesouros ocultos no corpo da terra ou escondê-los-ão na bruma? Não sabemos. Só podemos estar atentos aos sinais e aproveitar a sua boa disposição para subir o mais alto possível e ver… Tentar assimilar a beleza, tão intensa que chega a doer. Nesta viagem de emoções, o olhar que mais importa é o da alma. É com ela que vemos vales, montes, lagoas e o mar, o mar, o mar… É com ela que sentimos a morna humidade que nos envolve o corpo, caminhamos sobre as pedras negras vindas das profundezas escaldantes da terra e acabamos por adormecer de cansaço físico e emocional, escutando se o vento sopra no início da noite, como se a ilha nos dissesse que nos espera no dia seguinte, com bruma ou claridade, com ...

Dia e Noite

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"Dia e Noite", Escher Como seria se o dia e a noite convivessem no mesmo espaço temporal, como espelhos um do outro? Qual a possibilidade das luminosas criaturas do dia desejarem fazer jorrar claridade sobre a sombra negra da noite? E será que as escuras formas da noite cederiam à tentação de transformar a branca inocência diurna em noturna perversão? Ou poderíamos conviver pacificamente com essa dualidade branco/negro, luz/sombra, sem tentar modificar nada do outro lado do espelho? A natureza humana enfrentaria um estranho desafio nesta visão maniqueísta em que viveríamos do lado negro ou do lado branco, ou conseguiria entender a complementaridade dos dois lados do espelho, qual yin e yang que é necessário harmonizar? As aves, essas, podem sempre voar e ser radiantes de luz onde a sombra assim o necessita e sombrias de negritude quando o dia precisa de sombra e as chama, do outro lado do espelho.