As gavetas
O homem chegava todos os dias à
mesma hora ao café. Sentava-se normalmente na mesma mesa e perguntava à
empregada o que havia para almoçar. Por vezes trazia o neto que tinha ido
buscar à escola. Depois de comer, passava para uma mesa mais pequena para tomar
o café e ler o jornal. Chegavam outros clientes e ele avisava: olhe, o que está
bom é isto ou aquilo, aconselho. Os outros agradeciam o conselho que não tinham
pedido. Uma questão de educação.
Iam entretanto chegando alguns
amigos dali do bairro. Para beber café, para conversar. Olhe, viu aquilo do
Sporting, ontem? Como o homem era do Benfica, armava-se logo ali uma discussão
que a empregada fazia parar, com piadas para os dois. Olhe e afinal em quem é
que você votou, perguntava outro. Eu não votei em ninguém, isto é tudo uma data
de corruptos. Ele também não tinha votado mas foi buscar os seus vagos
conhecimentos políticos para dizer que não era bem assim, havia gente honesta.
Qual, qual? Diga lá para eu perceber em quem votou.
Não lhe vou dizer nada, o voto é
secreto. E as conversas apareciam assim, assuntos diferentes vindos de cada
mesa à volta dele, era o estado dos transportes, o tempo que o outro esperara
por uma consulta, pois e agora tinha uma operação que só daí a 10 meses. Até
lá, ainda morria, não fosse a filha conhecer uma doutora que ia tentar fazê-lo
passar à frente. À frente dos outros,
dizia ele, mas isso é imoral. E lá vinha nova discussão.
O homem já tinha lido o jornal
duas vezes e começava a não ter mais argumentos para tantos assuntos que aquela
gente ia desencantando. Levantou-se, pagou. Então já vai? Ora, não tem nada de
importante para fazer, fique aqui a falar connosco. Vou arrumar as minhas
gavetas. E assim saiu, sem ligar ao gozo dos outros : olha, agora deu em dono
de casa, arrumar o quê, o homem não está bem.
Não estava. Deu por si a pensar
em coisas que há muito tinha, conscientemente, esquecido. Para arrumar as gavetas
e enchê-las com informação sobre todos os assuntos da conversa do café, teve
que enfrentar o que lá se escondia, varrido para um canto: a morte da mulher, o
relativo abandono da família (a não ser quando precisavam dele), a sua falta de
objetivos desde que se reformara, a solidão, a solidão e ainda a solidão… Tudo
aquilo era a sua vida mascarada com o futebol, a política, as piadas dos que,
como ele, só se sentiam vivos naquelas mesas de café.
O homem deitou-se e dormiu até
tarde no dia seguinte. Quando viu as horas, que disparate, olha para isto, já
devia ter ido almoçar, logo hoje que lhes vou mostrar o telemóvel novo que o
filho me deu. Despachou-se a correr e foi. Os outros que já lá estavam
perguntaram da razão da demora. Não era que não sabia? Tinha dormido até tarde
mas não fazia a mínima ideia porquê.
- Homem, você está a ficar velho.
Então e as gavetas?
- Ah, as gavetas estão todas
arrumadas e bem fechadas.
Salvador Dali - Contador antropomórfico

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